Thursday, September 30, 2010

A mania das palavras

Ao toque dos teus lábios no meu ombro descoberto, um arrepio
não um arrepio no estômago, na espinha, no ventre, sequer.
Como é que eu explico?
Surpresa. Acho que surpresa, apenas. Uma espécie de frio, de medo, de desconforto…
não bem frio, medo, desconforto…
Como é que eu explico?
Se calhar porque há muito tempo que nenhuns lábios no meu ombro. Se calhar não tanto os lábios. Mais o bigode, talvez. Possível até que um arrepio de cócegas. É isso, Marcelo! Um arrepio de cócegas. Como é que eu poderia sentir desconforto em relação a ti; uma espéciezinha de repulsa!? Claro que não!
É certo que estremeci. Parece que petrifiquei, quando a tua perna a subir pela minha até quase à cintura. Não estava à espera, só isso.
Tal como a mão na cova do meu braço
a descer devagarinho
como uma pedra de gelo a derreter sobre uma bancada inclinada
a agarrar-me o seio
todo
a apertá-lo…
Não bem um desconforto, um…
Como é que eu explico?
Quando os teus lábios
ou o bigode dos teus lábios
no silêncio das coisas moles
a pegar-se-me ao pescoço…
Como é que eu explico?
o cheiro acre do hálito…
Não entendas mal!
O cheiro acre de uma mistura de coisas que vão ficando da vida toda
(quem sabe se, a procurar bem, não acharia aí o cheiro do nosso primeiro beijo, a minha saliva de menina ingénua!?
Quem sabe!?)
Não entendas mal!
Talvez um acumular de palavras
sedimentadas entre os dentes
debaixo da língua.
A mania das palavras se esconderem debaixo da língua!
Se calhar é isso
o cheiro acre das palavras por dizer
palavras que sempre tiveste vontade, mas que a língua
- Venham cá! Onde é que vocês vão?!
Mais do que a coragem
a língua
- Venham cá!
a acumulá-las
até que
um cheiro acre de palavras mortas
e
se alguma se esgueirasse por entre os lábios adormecidos pelo palheto
logo o bigode
- Venham cá! Onde é que vocês vão?!
a absorvê-las
como ao vapor da comida
da sopa de nabiças
dos pastelinhos de bacalhau
(que eu nunca soube fazer como a tua mãe os fazia…)
que aí ficaram do jantar
(os meus, a que te foste habituando ao longo destes vinte anos)
sob a mistura do café e do tabaco
a São Domingos que não dispensas
- Um homem farta-se de trabalhar!
Pois está claro!
E daí o acre.
Donde mais?
O seio apertado, como um pombo apanhado de surpresa a meio da noite num parapeito da cidade
a fingir-se de morto
bico encolhido
uma espécie de frio, de medo, de desconforto…
não bem frio, medo, desconforto…
Como é que eu explico?
Uma espécie de.
A mão a largar o pombo
e o teu relógio a arranhar-me a barriga
não me queixo
não foi por mal
pouca luz debaixo da colcha
dois ponteirozinhos fluorescentes a alumiar caminho…
Como é que eu explico?
Não bem frio, medo, desconforto…
Como é que eu explico?
Uma espécie de.
E os meus olhos a fecharem-se
que a luz da tua mesinha de cabeceira a projectar uma sombra enorme nas minhas costas, nas portas do roupeiro. Quantos anos terá aquele roupeiro, Marcelo? Já era dos teus pais. Lembras-te? Não, não estou noutro lado. É que… Lembrei-me, só isso.
E o teu relógio a dar horas nas minhas as pernas
para cima e para baixo
como a mão da minha mãe quando eu caía
e ela
- Pronto, já passou.
para cima e para baixo
- Pronto…
o elástico dos interiores a afastar-se da pele
a permitir mais espaço ao relógio
dois ponteirozinhos fluorescente a indicar o caminho à tua mão, como duas lanternas no escuro
já não no tecido
já não na pele
numa coisa intermédia que não sei bem se eu ou não
e nisto a mão inteira a fazer-se encolher
um arrepio
não um arrepio no estômago, na espinha, no ventre, sequer.
Como é que eu explico?
Se calhar um desconforto. Sim, é capaz que um desconforto, mesmo
devia ter-me arranjado… Não estava à espera.
Eu sei que não te importas
é coisa rápida
além de que gostas de mim…
Não é, Marcelo?
ainda que as palavras debaixo da língua
numa mania que não se entende
a azedarem-te o hálito
palavras que sempre tiveste vontade, mas que a língua
o bigode
- Venham cá! Onde é que vocês vão?!
a absorvê-las
como ao vapor da comida
a sedimentá-las entre os dentes, debaixo da língua, num acumular acre de palavras mortas.
Eu sei que não te importas
é coisa rápida
mas o que é que tu queres!?

Não estava à espera…
Há muito tempo que nenhuns lábios no meu ombro, no meu pescoço, nenhum tique-taque no meio das minhas pernas
que o elástico dos interiores a afastar-se da pele
a permitir mais espaço
que uma mão inteira
delicada
se assim se pode dizer
a pegar, com cuidado, no pombo assustado de mim.
Não estava à espera…
O teu bigode a apagar-me os lábios
e o cheiro acre de uma mistura de coisas que vão ficando da vida toda, a luz dos olhos
como a colher de óleo de fígado de bacalhau que a minha mãe
- Laurinda Maria, não me faças fitas!
a apagar-me a luz dos olhos.
Não para imaginar outra coisa; para custar menos
mas por reflexo
por um jeito que me ficou desse tempo em que
- Está bem, está bem! Tem de ser, tem de ser, tem de ser…
a encolher a língua
colher na língua
língua na língua
a procurar palavras
- … Tem de ser, tem de ser, tem de ser…
a engolir o fígado de bacalhau
o bacalhau inteiro
a tua língua
mil cheiros
sabores
sopa de nabiças
pastelinhos de bacalhau
ou de fígado de bacalhau
- … Tem de ser, tem de ser, tem de ser…
Não uma espécie de repulsa. Um reflexo
um jeito que me ficou desse tempo em que
- Está bem, está bem!...
E nisto, um pouco mais de ti entre nós
crescente
o teu corpo a subir para cima de mim
a procurar encaixar-se entre as minhas pernas dormentes
como o pombo no parapeito
Não eu, Marcelo. As pernas. O dia todo na loja, de pé… Sabes como é?!
Mas tu a dares o jeito
ponta de colher a afastar os lábios
- Laurinda Maria, não me faças fitas!
e eu
- Está bem, está bem! Tem de ser, tem de ser, tem de ser…
de olhos fechados
e a colher
o espéculo dos teus dedos
a afastar os lábios
- Pronto! Já está! Estás a ver?! Não custa nada!
a voz da minha mãe nos meus olhos encolhidos
nos meus olhos fechados
- … Estás a ver!
- … Não custa nada!
a esperar pelo entretanto em que o desconforto
ou lá que nome lhe dar
abranda
em razão inversa à tua respiração arfante, cachorro a fungar pombos no parapeito de mim.
É só esperar um pouco
e depois até parece mais fácil
quase parece agradável
mais ou menos na altura em que tu estremeces
um arrepio
como eu ao início
mas diferente
e parece que paras de gostar de mim.
Eu sei que não, Marcelo.
As palavras é que…
Eu sei…
Uma mania que não se entende.
Afinal, um beijo na cabeça
como uma voz na infância
- Pronto! Já está! Estás a ver?! Não custa nada!
um beijo
na cabeça
aplauso ao cair do pano sobre o palco ensonado das minhas pernas
um beijo
antes da mão no interruptor me apagar
como um cheiro acre
a luz dos olhos
e a tua voz
na permissão censória do bigode
me dizer
- Até amanhã.
e reduzir o quarto ao silêncio acre das palavras mortas.

Saturday, September 25, 2010

Salmões no Tejo

Pesava dos olhos. Não pensava em nada.
Pensava no sono que me enchia a cabeça, como o azul intenso da manhã clara
céu e mar…
Não!
Não pensava em nada.
O Tejo enorme à minha frente
ou o Atlântico, já
naquele limbo misterioso que é a Cruz Quebrada
entroncamento entre dois rios e o oceano
onde a estação se confunde com a espera, e eu
com o banco enfadado
com o relógio dormente
com o horizonte deserto de comboios e gente
onde o tempo não passa e a vida se gasta toda
e onde apenas um albatroz na beira do telhado
que não há abutres neste Oeste
(há quem diga que albatrozes tão pouco)
(há quem diga tanta coisa)
na beira do telhado
com um olho posto no céu
no mar
no azul intenso da manhã clara
e o outro
que os albatrozes
como os abutres e os desconfiados
têm um olho para cada lado
o outro
nos restos de um velho a nascer na paisagem.
Vinha devagar
a arrastar os pés
zec, zec
no chinelar cansado
como se cada passo
um degrau e meio
avançando a passinhos de cego, arrastando a vida, forçando-a a mais um passo, mais um passo…
e a vida
agarrada aos pés
implorando-lhe que não
por misericórdia
que já chegava
que já não havia mais nada para andar
que estava cansada
que quanto mais andasse mais acabaria com ela…
Mas o velho
o pobre do velho
(que todo o velho é pobre)
confundindo
(como toda a gente a dada altura)
a vida com a morte
arrastava-se
(como uma presa mordida)
arrastando-a
cansada
implorante
- Pára! Por favor, pára! Senta-te, homem de Deus! Descansa! Não vês que acabas connosco?!
Mas o velho
o pobre do velho
(que todo o velho é pobre)
confundindo
(como toda a gente…)
a vida com a morte
mais um passo, mais um passo…
no zec, zec dos chinelos gastos
fugindo da vida como se da morte
vergado e lento
que a morte é uma cruz que se carrega às costas pela vida toda.
Cada passo mais um passo a menos. E a cada passinho lento mais longe da vida; mais próximo da morte
confundindo tudo
apesar da vida
- Pára! (…) Não vês que acabas connosco?!
o velho
surdo
(que todo o velho é surdo)
a arrastar as pernas para os braços da morte
como um salmão exausto, rio acima
pela orla do Tejo
e por mais que a vida
- Não há salmões no Tejo, homem de Deus!
o velho
o pobre do velho
zec, zec
passeio afora
rio acima
zec, zec
num barbatanear cansado
a deitar as guelras pela boca.
Na beira do telhado
o albatroz
que não há abutres neste Oeste
com um olho posto no céu
no mar
no azul intenso da manhã clara
e o outro
que os albatrozes
como os abutres e os desconfiados
têm um olho para cada lado
o outro
desconfiado
nos restos daquele salmão velho
porque em tantos anos de vida nunca um salmão no Tejo
desconfiado
a olhar os restos do velho que demorava a passar
como uma dor, uma angústia
no zec, zec, dos chinelos gastos
como os dias
gastos
de tanto
zec, zec
sem para onde ou remédio.
Demorou a passar
como uma tristeza, um desgosto de amor
mas já lá vai
salmão perdido a caminho de Albarracim
num zec, zec, de barbatanas gastas.
Demorou a passar
como uma pena de quinze anos, como o último dia antes das férias
como a vida toda que é um instante
espaço morto entre duas estações
Cruz Quebrada – Cais do Sodré
mas que passa, todavia
como um par de chinelos rio acima
num zec, zec arrastado a caminho de Albarracim.
O Tejo enorme à minha frente
para lá das grade que o separam da estação onde o comboio nunca mais chega do Atlântico para fazer paragem naquele limbo misterioso e levar-me de volta a Lisboa, que o tempo passa sem um homem se dar conta, e qualquer dia é um dia qualquer
que já não importa
pois cada passo
um degrau e meio
a arrastar a paisagem
num zec, zec miudinho
que já não leva a muito longe
e desperta o instinto do albatroz
(que há quem diga não haver por estas latitudes do mundo)
com um olho posto no céu
no mar
no azul intenso da manhã clara
e o outro
desconfiado
no gesto lento
no passo gasto
à espera do instante exacto de picar o voo
que ele afinal, há mais salmões no Tejo do que aquilo que se pode imaginar.

Monday, August 30, 2010

Contrafacções

Gostava de frequentar aquele bar. Era sempre sozinho que lá ia. Era sempre sozinho que lá estava. A dona, uma mulher robusta dos seus cinquenta, já me tratava pelo nome.
- Boa noite, senhor António.
apesar de eu
José Luís
que para quem não quero que
José Luís
- António.
De modo que
de cada vez que eu chegava
- Boa noite, senhor António.
e um sorriso
uma mesura de cabeça…
Uma simpatia!
Talvez porque casa aberta
visto ter cara de mulher batida pelas rajadas da vida
(ou do amor, que é o que se quer dizer quando se diz da vida)
cujos pés
sob as mantas
se valiam um ao outro
enroscando-se
num concílio de dedos
para lhe acalentar o sono
que a alma
(e isto sou eu a dizer)
há muito regelara de tão só.
Fosse lá porque fosse
(não importa)
a verdade é que
uma simpatia
e eu…
eu retribuía da melhor forma possível para um tipo do meu género
com cara
(bem certo)
de homem batido pelas rajadas da vida
(…)
O bar ficava num primeiro andar de um prédio cujo rés-do-chão não existia
(porta da rua e umas escadas);
a meio do salão, encostado à parede, um piano sem cauda
como um cão amputado
aguardava umas festas
(que era isso que lhe faziam)
no pêlo zebrado de dálmata empalhado.
Pedia um conhaque
(eu, claro
o piano, apenas umas festas)
e a dona Odete
(chamava-se Odete)
a dona Odete
trazia-me um brandy
um sorriso
uma mesura de cabeça…
(uma simpatia)
uma voz rouca de que quem toda a vida fumou e bebeu por solidão
- Ora aqui está o conhaquezinho!
e um sorrido
um brandy
que a dona Odete
- …conhaquezinho.
e que eu
(uma simpatia)
fingia ser conhaque
Não importava. Sabia-me quase ao mesmo, embora pagasse pelo pedido e não pela destilação. Talvez por soar melhor ao ouvido, afinal
conhaque é conhaque!
E ali ficava a bebericá-lo, enquanto a dona Odete declamava poesia nos intervalos das músicas.
Pessoa. Sempre Pessoa. Singular ou plural, mas, sempre Pessoa.
Era sempre dos últimos a sair
eu
a minha pessoa
às vezes plural
sempre das últimas a sair
(que para quem não tem destino, qualquer lugar está bom
está óptimo).
… sempre dos últimos

Mas naquele dia fiquei para lá do suposto.

Na parede oposta da sala, por sobre uma lareira extinta
(a lembrar-me um jazigo de família)
uma réplica de Picasso
O peixe numa travessa
Se fosse português, talvez houvesse pintado uma posta de bacalhau assado a boiar num mar de azeite, imortalizando o “fiel amigo”. Mas era espanhol, raios o partam por isso também!
Não me estou a desviar o assunto.
… fiquei para lá do suposto. Não tinha ninguém à minha espera no quarto alugado onde vivia para os lados dos anjos
e
porque ninguém à minha espera
para os lados dos Anjos
do céu
do paraíso
(que para quem não tem destino, qualquer lugar está bom
está óptimo
o paraíso)
ninguém
um cão, sequer
à minha espera
ninguém
que eu
amigo nenhum
(dois ou três colegas de trabalho, só isso)
divorciado e sozinho
- Impossível de aturar!
nas palavras da minha ex-mulher.
Não me estou a desviar o assunto.
Um pequeno parênteses
não há pressa
ninguém à minha espera
para os lados dos Anjos
do céu
do paraíso
um cão, sequer
um dálmata empalhado à espera de umas festas
nada.
Não me estou a desviar o assunto.
Um pequeno parênteses.
Talvez se um conhaque
um brandy
não importa
eu directo ao assunto
que um conhaque
ou brandy
como um pequeno parênteses
facilita as palavras que se querem dizer.
De modo que
sexta-feira à noite
divorciado e sozinho
conhaque e gigante
(fica conhaque, que se lixe!)
fiquei para lá do suposto
no canto do costume
(porque chegava cedo)
ausente
pensando em coisas ao sabor do conhaque
quando um fulano de cabelo lambido se levantou de uma mesa entre eis e ous, e foi sentar-se vaidosamente ao piano. Não lhe prestei muita atenção
pensando em coisas ao sabor do conhaque
(…que se lixe!)
no canto do costume de quem chega mais cedo
até ao instante em que começou a assassinar Choupin com as próprias mãos.
O conhaque, de repente, 605-forte
a queimar-me por dentro
direito aos nervos…
Os amigos
e os demais apedeutas ali presentes
deram-lhe, com palmas, a ideia poder assassinar impunemente mais um génio ou dois. E o fulano
cabelo lambido
não foi de modas, enterrando as unhas assassinas no pescoço de Mozart, numa subespécie de Salieri rancoroso
um réquiem ao réquiem
e ali ficou, durante mais duas ovações, a arrancar uivos de dor àquele dálmata amputado, como uma criança que repete a palermice ante o riso idiota dos adultos…
Não me estou a desviar o assunto.
E o fulano
cabelo lambido
a caminho da mesa
(ante as palmas e os dentes arreganhados daquele grupo de babuínos)
com ar dos cagões sem arte a fingir modéstia
- Nada de especial!
que era mais do que a verdade, embora ninguém concordasse com isso
(nem mesmo ele)
porque
na voz dos amigos
- Lá está este gajo armado em modesto!
- Podia ter ido longe!
outro mais consciencioso
(pelo menos prefiro pensar assim)
Mas não foi
e
para mal dos meus pecados
ficou por ali, a acabar de me falsificar a noite
a arrancar-me a fórceps da minha ausência
do canto do costume
a despertar em mim instintos violentos
que
felizmente
apaziguados pela presença robusta da dona Odete que se chegou ao centro da sala ainda a chapar as palmas uma na outra
(também ela)
que quem não distingue brandy de conhaque também não distingue Mozat de José Cid
(talvez porque casa aberta)
(uma simpatia)
e a anunciar
no fadeout dos aplausos
um poema de Pessoa
singular
plural
não importa…
Não me estou a desviar do assunto.
…a gerar silêncio na sala
e a sua figura
(vestido castanho de ombros largos, pernas grossas)
a colocar a voz
rouca
de que quem toda a vida fumou e bebeu por solidão
a inspirar fundo
enchendo o peito
onde o coração
senhor de um espaço imenso
a olhar para o canto
onde eu de costume
a encarnar o drama da declamação
a fechar os olhos, encerrando-me dentro
e...
Nessa noite não fui o último a sair. Nessa noite fiquei para além claridade da manhã. Nessa noite
de manhã
quando uma voz nas minhas costas
- Até logo, António.
eu
de mão na porta
na maçaneta de gelo
a sentir na boca a verdade contrafeita que alimenta a vergonha dos tristes e
por pouco não disse
- Zé Luís. Trate-me por Zé Luís.

Wednesday, August 25, 2010

Vives perigoso

Vives perigoso, no meio de todas as tuas cautelas, e
por mais que alguém
- Abre os olhos!
hás-de sempre encolher os ombros e seguir em frente, porque se ele há coisa que tu sabes é por onde pisas. E os erros dos outros…
os erros dos outros são os erros dos outros.
Não és o único. Mas não sê-lo não te livra da mediocridade. E o haver mais cegos na terra não te alivia a cegueira.
Não te preocupes com nada! Não penses em coisa alguma. Para quê? No fim de contas já pagas os teus impostos e o que ganhas mal te dá para tabaco e cafés. Pena o preço dos livros estar pela hora da morte, e um bilhete de teatro, nem se fala! Porque senão…
senão seria Eça e Shakespeare de manhã à noite.
Assim, olha… vai uma revistinha de algodão doce ou um jornaleco desportivo.
Vives perigoso, no meio de todas as tuas certezas, e por mais que alguém
- Abre os olhos!
hás-de sempre encolher os ombros e seguir em frente, porque em frente é que é o caminho. Mas ignoras que o caminho em frente é para quem sabe para onde vai, e tu… tu andas às voltas, como o ponteiro dos segundos, preso pelo rabo, embrutecendo sem sair do lugar. E como o ponteiro dos segundos, és o que mais se cansa, porque o que importa são as horas e de ti pouco se quer saber. Tens de dar muita volta para que o barão dos ponteiros se digne a dar um passo, que esse sim é importante, apesar de pequeno e gordo. És um burro à nora, que enquanto não tirar mil alcatruzes de água não tem direito a matar a sede.
Crês que se acabou o tempo da escravatura? Nem o tronco nem a chibata se extinguiram. Mudaram-se-lhes apenas os nomes, que é assim que se enganam os tolos e não com bolos e papas como há ainda muito quem pense. E de quem é a culpa?
Diria que é desses bastardos que disparam o preço dos livros, dos bilhetes de teatro; que deixam a vida pela hora da morte. Porque senão
eu sei
senão seria Eça e Shakespeare de manhã à noite.
Mas boceja, que é o que melhor te sai da boca. Não digas nada. Não faças coisa alguma. Para quê? Não pagas já os teus impostos e não andas à rasca para tabaco e cafés?
Encolhe os ombros e segue em frente, porque em frente é que é o caminho…
o caminho do sofá, da superfície comercial, do café, do trabalho, do cemitério municipal.
Que sabes tu do mundo que te rodeia, tu que votas e te exaltas? Tu que revolucionarias a economia de um país inteiro, do mundo todo, se tos pusessem nas mãos, apesar de estares enterrado em dívidas até à última vértebra do pescoço?
A culpa é do sistema. Também concordo. Do jantar fora por sistema, do comprar roupinha de marca por sistema, do último telemóvel por sistema, de umas jantes novas para o popó por sistema, da malinha nova para condizer com a sainha nova por sistema, do ipod, do pda, do htc, do lcd, tudo xpto.
Pena o preço dos livros estar pela hora da morte e não haver bibliotecas neste país! Felizmente as revistitas de algodão doce e os jornalecos desportivos são oferta do Estado, que nem para tudo é mau o sistema.
Que sabes tu do mundo que te rodeia, tu que votas e te exaltas? Que acabarias com a guerra no mundo, mas distribuis lambada lá por casa como panfletos à boca do metro?
E de ti mesmo, que sabes tu? Saberás, por certo, mais da vida alheia, ou da de uma qualquer personagem de novela, que de ti mesmo ou de quem a teu lado enche o silêncio do quarto com roncos profundos. Mas como poderias tu saber, se tens a cabeça mareada de tanto andar à volta e o chão já te dá pela cintura… Não tardará a cobrir-te por completo.
Saberás, porventura, o porquê da tua inércia, da tua inépcia? E como se conjuga a segunda pessoa do singular do futuro do conjuntivo do verbo saber?
Quando souberes, avança… até lá
Abre os olhos!

Saturday, July 31, 2010

Un je ne sais quoi

Há pessoas que
como dizer (?)
falta-lhes qualquer coisa, que
não sabendo nós explicar
é a mais importante das coisas: aquilo a que os franceses chamam de “um eu não sei o quê”.
É capaz, pois, que seja isso. Aliás, só pode, visto não haver outro nome para lhe dar. Era isso que Lara tinha
ou não tinha.
Até há bem pouco tempo a minha cabeça confundia conceitos, de tal modo que cheguei a pôr em causa coisas até aí incontestáveis.
A Lara era dona de um corpo soberbo. Fisicamente era irrepreensível. Inteligente, simpática… No entanto, havia nela qualquer coisa
melhor dizendo
não havia
nela
qualquer coisa.
A princípio questionava-me sem encontrar um porquê. Creio que o tempo que passámos juntos foi mais pelo gosto dos meus amigos que pelo meu próprio.
- Bem, ganda canhão, ó Rui!
e eu
objector de consciência por natureza
a perguntar-me se não estaria aí o problema
- … ganda canhão…
de maneira que quando a Lara
- Saímos hoje?
numa vozinha sensualíssima
(também isso jogava a seu favor)
eu a não ter outra resposta que
- Sim. Porque não!
na convicção estúpida dos indecisos
- … Porque não!
porque
a falta-lhe qualquer coisa
aquilo a que os franceses
“um eu não sei o quê”
que Lara tinha
ou não tinha.
Até há bem pouco tempo a minha cabeça confundia conceitos, de tal modo que
- Sim. Porque não!
e a acordar no Estoril, na manhã seguinte, num open space com vista para o mar, num enjoo de quem comeu molotofe a noite toda
um enjoo que parece saciedade
mas enjoo
saciedade zero
um encher de boca com algodão doce que
mal a língua
o céu da boca
puf
feito em nada
aparência apetitosa ante o olhar guloso de criança que pouco pegou no peito da mãe
(uma infecção não sei das quantas)
vai daí que o leite
uma aguadilha só
alimento zero
um soro vazio de nutrimento e afecto
de modo que eu
se um peitinho mais avolumado
a atirar-me ao chão da minha infância
carente
(a infância e eu)
a salivar como um cão russo ao toque de uma sineta.
Por isso, da primeira vez que a Lara
(o peito da Lara)
nos meus olhos
eu a achar que a mulher da minha vida, o peito devido da minha infância. Mas ao fim da primeira noite
um open space sobre o mar do Estoril
um enjoo de marinheiro
não pelo mar do Estoril
mas pelo molotofe
pelo corpo da Lara que
sabor nenhum
um vazio que nem a magnificência do peito conseguiu encher
a perguntar para mim mesmo diante do Atlântico
do mar do Estoril
varanda aberta sobre um infinito de azul
- O que é que foi isto?
e uma vontade de sair de mansinho sem dizer nada
de lhe pedir desculpa
(melhor seria)
uma vontade de lhe dizer
(com a mão a coçar a nuca. Tenho a certeza que com a mão a coçar a nuca)
- Não sei qual é a tua ideia em relação a isto…
(a isto?!)
- … mas…

e a Lara a acordar, a espreguiçar-se nua, a sorrir de satisfeita com o Mar do Estoril a incendiar o quarto com o reflexo do dia
o corpo dourado
soberbo
irrepreensível
num contorcer de lençóis realizados
- Bom dia!
pés de dedos perfeitos, num esticar de gata feliz.
- Bom dia!
a levantar-se da cama
nua
pés perfeitos
os joelhos
os ossos das ancas
a púbis loura
soberbo
o corpo
irrepreensível
olhos verdes
fios de ouro pelos ombros abaixo
almofadinhas no lugar dos lábios
e um peito…
- Bom dia!
na minha direcção
varanda aberta sobre um infinito de azul
onde a brisa fresca da manhã no seu corpo inteiro
descalço até à alma
de mamilos livres a provocar o vento
a dar-me um beijo
- Bom dia!
almofadinhas no lugar dos lábios
o hálito morno do sono
e dois casulos de seda a tocar-me o peito
livres
a provocar o vento
o mar do Estoril
-Bom dia!
A manhã do mundo inteira e fresca nas minhas narinas
a cabeça confusa
numa neblina a lembrar São Pedro de Moel
a Nazaré de D. Fuas
enjoo e vertigem…
e a voz da Lara
(também isso jogava a seu favor)
qualquer coisa que não me consigo recordar
a afastar-se
para já ali
polibã transparente com vista para o quarto
para o mar do Estoril
varanda aberta sobre um infinito de azul
de dúvidas
a pôr em causa coisas até aí incontestáveis…
a puxar-me
não sei como
a puxar-me
para já ali
polibã transparente
e a ensaboar-me as dúvidas
debaixo de um aguaceiro sobre o Oceano imenso
a gerar, no silêncio de uma mão a coçar a nuca, uma inquietação que não se disse
- Não sei qual é a tua ideia em relação a isto…
E a repetir-se a noite, a madrugada e a manhã ao longo do dia
e as dúvidas todas
um mar delas maior que o do Estoril
que o Atlântico inteiro
a naufragar-me as certezas
uma trás outra
como um malmequer de espuma
serei gay?
não serei gay?
(Que estupidez tão grande!)
e a repetir-se a noite, a madrugada e a manhã, o dia todo nessa mesma noite, na noite seguinte
a esforçar-me para me manter concentrado
a parecer cumprir o papel sem a menor das repreensões
visto a Lara
sorrisos nos olhos
de manhã sobre o mar
mais reservada no passar dos dias
camisolinha de alças
mais provocadora, talvez
algodão branco cobrindo casulos de seda
((como o polibã transparente)
(cobrindo coisa nenhuma))
camisolinha de alças
a provocar o vento
- Bom dia!
dia trás dia
- Bom dia!
para o mar do Estoril
inchado de ondas
o Atlântico todo posto de pé
visto a Lara
ou os casulos de seda
- Bom dia!
dia trás dia
até que uma noite
às escuras
(nem uma fresta de estores)
o sono
como um molotofe
puf
feito em nada
a procurá-la com o faro, como os bichos, a fungar no vazio do Universo inodoro
à procura daquele corpo que
já ali
e…
puf
um molotofe
polibã transparente
nada!
Foi então que compreendi o “…não sei o quê” a que os franceses chamam àquilo que a Lara não tinha. Faltava-lhe cheiro. Era inodora como água destilada. Nem um só aroma. Nada. Suada, por suar, ao adormecer, ao acordar…
rigorosamente inodora
uma Jeanne-Baptiste Grenouille da Penthouse. Nem o cheiro da cama, do sono, do perfume que apenas na roupa que vestia, como se a pele rejeitasse artificialidades.
Curioso como o cheiro pode tanto. Quando regressámos a Lisboa disse-lhe que não me sentia bem na relação
(que não era relação nenhuma, mas…)
que andava confuso
que tinha receio de me envolver…
(as desculpas do costume)
A Lara não entendeu.
Uma mulher nunca entende que um homem
- Não me sinto bem na relação.
(que não era relação nenhuma, mas…)
- Ando confuso.
- … receio de me envolver.
(as desculpas do costume)
não entendeu
a Lara
nem os meus amigos, quando eu
- Faltava-lhe qualquer coisa.
porque impossível de explicar a um grupo de homens que deixara uma mulher daquelas por não ter cheiro. Por isso, a dizer apenas
- Faltava-lhe qualquer coisa.
- Faltava-lhe o quê, pá?!
e eu
impossível de explicar a um grupo de homens que
o cheiro
a dizer apenas
- Aquilo que os franceses chamam de Un je ne sais quoi.

Wednesday, June 30, 2010

Plataforma de embarque

Lembro-me como se fosse hoje. Uma floresta de gente, de um lado para o outro
na época em que as pessoas apenas pernas
e uma voz
lá em cima
a lembrar deuses
e eu
pela mão nervosa da minha mãe, na plataforma de embarque de Santa Apolónia, com a voz do meu pai
muito para lá das pernas
a recomendar
- Porta-te bem rapazão!
e eu
que não era rapazão
a dizer que sim com a cabeça
não a dizer
- Sim.
apenas com a cabeça
porque a voz atabalhoada talvez não chegasse lá acima
(que a voz dos pequenos, como a dos burros, nunca chega ao céu)
é ver o caso da avó Maria, a rezar baixinho pela sorte dos filhos e dos netos que
- … pouca sorte.
e quando é pouca
dizia
- … mais vale nenhuma!
de modo que
sim com a cabeça
não a dizer

apenas com a cabeça
onde uma mão
de Deus
do meu pai
(naquela idade, uma e a mesma coisa)
a repetir
porque nunca é demais um aviso
- Porta-te bem rapazão!
A mesma mão que depois na barriga da minha mãe, antes do beijo na face
que naquele tempo a boca apenas para comer e falar
(pouco de cada)
pois nem para rezar a Deus se precisava de abri-la. Apesar da avó Maria de gengivas polidas
a mastigar orações, duras, como côdeas, que é com pão que se comunga à mesa de Deus e não com as rodelinhas de Farinha Amparo, que o padre Simeão
- Corpo de Cristo.
“Corpo de Cristo uma ova! Farinha Amparo, ou pensa que me engana!?” e
apesar de não precisar
a boca da avó Maria lá ia macerando as palavras, as côdeas, o corpo do Senhor
- … assim na Terra como no Céu…
de gengivas polidas
num “nham, nham” suplicante
pela sorte dos filhos e dos netos que
- … pouca sorte.
e quando é pouca…
(já se sabe)
num “nham, nham” suplicante
como a boca da minha mãe por um beijo que
na face
que naquele tempo os beijos na boca reservavam-se à intimidade do quarto
(se por ventura alguma intimidade no quarto)
pois como na oração da avó Maria
pela sorte dos filhos e dos netos que
- …não nos deixeis
Senhor
- …cair em tentação…
De modo que
uma mão na cabeça
um beijo na face
e umas costas enormes a afastarem-se de nós. Não o meu pai
umas costas enormes
a diminuírem na plataforma de embarque de Santa Apolónia
até quase ao meu tamanho
o meu pai
ou as costas
quase do meu tamanho
cabeça e tronco
um pouco mais do que umas pernas
um homem
o meu pai, um homem
deus algum
um homem
a apequenar-se
a apequenar-se
(que à distância todos os gigantes são pequenos; todos os deuses são mundanos)
a afastar-se
de nós
cada vez mais pequeno
duas malas
pouco pai já
já não duas pernas
duas malas
um sobretudo
a caminho do comboio, a caminho de
- Paris de França, filho.
a minha mãe a responder à pergunta de “para onde” “o pai”
como se
- Paris de França…
Póvoa de Santo Adrião
para onde, dali a pouco
a camioneta
que naquele tempo
autocarro
como beijo na boca
não se usava.
- Paris de França, filho.
numa voz tremida
a lembrar-me a avó Maria
…orações polidas, a mastigar gengivas, duras, côdeas de Deus, não rodelinhas de Farinha Amparo
- … o pão-nosso de cada dia …
que é com pão que se comunga à mesa do Senhor, padre Simeão!
voz tremida
na plataforma de embarque de Santa Apolónia
- Paris de França, filho.
como se
- Paris de França…
Póvoa de Santo Adrião
para onde, dali a pouco…
Lembro-me como se fosse hoje. Uma floresta de gente, de um lado para o outro
a minha mãe
na plataforma de embarque de Santa Apolónia
uma mão no ar a despedir-se de um par de malas
de um sobretudo
de si mesma
na mala do meu pai
numa moldura foleira
(a própria palavra - foleira)
uma mão no ar
a outra a segurar a barriga, a minha irmã Cristina
que eu
(um rapazão)
a não precisar já que me segurassem a mãozinha
a mão, corrijo
onde tantos dedos quantos o anos que tinha
fácil a conta quando me perguntavam
- Quantos anos tens tu?
logo muito pronto, de mãozinha no ar
mão, corrijo
logo muito pronto
num juramento solene
- Estes.
de mão no ar
como a minha mãe na plataforma de embarque de Santa Apolónia
uma mão cheia
de anos
de tristeza
de adeus
e por isso
quando seis, já
ainda a levantar uma mão apenas. Para quê complicar as coisas quando, a partir de certa altura, uma mão cheia diz tudo?
anos
tristeza
adeus…
…para quê complicar as coisas…?
uma mão apenas
no ar
cheia
vazia
cheia de vazio
outra forma de dizê-lo
adeus…
apenas uma
… para quê complicar…?
a outra, na barriga
enorme
sete meses
para que a minha irmã não chorasse
pois (para quem não sabe) os bebés choram na barriga das mães. E quando a placenta já lhes não contém o peso das lágrimas, vêm chorar cá para fora, que há mais espaço para o lamento. Se calhar por isso a Cristina a nascer de oito meses, pois as lágrimas da minha mãe a irem-lhe pela goela abaixo juntar-se às suas, que nos olhos, uma lentura apenas .
E nisto um
Tuu-Tuu
ou eu a achar que um
Tuu-Tuu
a pôr o comboio em marcha
- Paris de França…
Mil cabeças à janela…
- Qual é o pai, mãe?
E uma lágrima a transbordar da placenta para os lábios sumidos, que agora, sim, era a sério
Tuu-Tuu
- Qual é o pai, mãe?
a não alcançar resposta
porque a voz atabalhoada talvez não chegasse lá acima
(que a voz dos pequenos…)
o caso da avó Maria
a não alcançar resposta
- … assim na Terra como no Céu…
- Qual é o pai, mãe?
a não alcançar resposta
mil cabeças à janela
e um alarido de braços no ar a despedirem-se do meu pai
da minha mãe
na mala
numa moldura foleira
(a própria palavra…)
a caminho de França
há cinquenta e três anos
como se fosse hoje
a última vez que
- …rapazão!
na plataforma de embarque de Santa Apolónia
uma floresta de gente
pernas e vozes
braços no ar
a despedirem-se
do meu pai
para sempre
(…)
para sempre
para sempre
para sempre
Tuu-Tuu…

Tuesday, October 27, 2009

Palavras

O teu corpo satisfeito
suado do esforço para arrancar de mim um suspiro de gozo
a dizer que me ama
- Amo-te…
sem emoção
- Amo-te…
um bigode
num arquejo
suado
- Amo-te…
a dizer que me ama
um bigode cheirando a cinzeiro
a dizer que me ama
como se um bigode
cheirando a cinzeiro
capaz de amar alguém
- Amo-te, Margarida.
como a minha mãe
- … Margarida…
sem emoção
a quem o meu pai nunca dissera amar
- O teu pai nunca disse que me amava.
e por isso eu a dever sentir-me satisfeita, pois ao menos tu
o teu bigode
apesar do porquê
daqueles três suspiros ridículos que os homens soltam no fim de quebrarem
- Amo-te, Margarida.
a dever sentir-me satisfeita
visto o meu pai
nunca
- Amo-te...
sem emoção, que fosse
- Amo-te...
uma vez na vida
- Amo-te…
nunca
nem sequer depois dos suspiros
ridículos
que os homens
ridículos
no fim de quebrarem
a dever sentir-me satisfeita
porque tu
o teu bigode
apesar do porquê
emoção ou não
- Amo-te, Margarida.
- … Margarina.
- … Catrapiler.
- … Regisconta.
- … Rais ta partam.
como todos os homens
ridículos
depois dos três suspiros
- Amo-te…
Mas não. Não sinto. Da mesma forma que não sinto tu a suspirares para dentro de mim. Sequer tu, dentro de mim. Não sinto, não sinto, não sinto…
ao contrário da voz da minha mãe
no meu estômago
como um arrepio
- Tu nunca te satisfazes com nada!
e uma vontade de responder
Com nada, mãe?
Um bigode cheirando a cinzeiro, mãe?
Um bigode que
- Ah! Ah! Ah!
trisuspirando
como quem
“minha machadinha”
quase sem folgo, como um rato desancado à vassourada
- Amo-te, Margarida.
só porque…
- Ah! Ah! Ah!
dentro de mim, mãe!?
É, mãe?
Nunca me satisfaço com nada, mãe?
Só porque o pai nunca
- Amo-te, Ricardina.
uma vez na vida
- Amo-te, Ricardina.
nem sequer depois dos suspiros
- Amo-te, Ricardina.
devo dar graças a Deus por o Manel
- Amo-te, Margarida.
(?)
É, mãe?
Só porque nunca um estalo, eu a dever graças a Deus?
É, mãe?
Nunca me satisfaço com nada!?
Acha, mãe? Com nada?
Um rato cheirando a cinzeiro, mãe!? Babado! Como se em vez da vassourada, a boca de um gato. Babado, mãe! Babado!
Como é que uma mulher se satisfaz com um rato babado cheirando a cinzeiro, mãe? Como, mãe? Como?
Nunca um carinho, um abraço, um jantar fora, uma flor. Peidos debaixo dos lençóis, mãe! Que eu há noites mal prego olho de tanto sonho por cumprir.
- Tu nunca te satisfazes com nada!
Nos pés, cascas de mexilhões nascendo dos dedos
e se eu
- Ó Manel, corta as unhas!
logo o Manel
- Andas muito fina, tu!
só porque eu
- Ó Manel, corta as unhas!
Nunca me satisfaço com nada, mãe?
Um bigode amarelo cheirando a cinzeiro. Não tinha dito? Digo agora. Amarelo. Como é que se geme debaixo de um bigode amarelo cheirando a cinzeiro senão de sofrimento, mãe? Como, mãe?
É pedir muito, um carinho, um abraço, um jantar fora, uma flor… unhas em vez de cascas, ar puro debaixo dos lençóis? É, mãe? Só porque
“- Amo-te”
depois de três suspiros
ridículos
dentro de mim?
As palavras não são tudo, mãe
Manel
(!)
Há os gestos, a ausência deles
que um
- Amo-te!
depois de um homem suspirar três vezes vale tanto como a confissão de um torturado
Mentira! Mentira! Mentira! Eu sei que é mentira, mãe!
“Amo-te”, coisa nenhuma
um desabafo
um suspiro diferente de “Ah!”
o mesmo que nada
o silêncio do pai depois de quebrar…
Nunca um carinho, um abraço, um jantar fora, uma flor. Peidos debaixo dos lençóis, mãe! Que eu há noites mal prego olho de tanto sonho por cumprir.
Mentira! Mentira! Mentira!
como
- Ah! Ah! Ah!
(minha machadinha)
e no mesmo fôlego
- Amo-te, Margarida.
naquele ínfimo instante em que um homem crê no amor como um condenado em Deus à hora da morte
mas que passa rápido
um calor que se perde depressa
porque o amor de um homem arrefece rápido, como o que deles nos sobra no transpirado das coxas
(não é mãe?)
rápido
frio
como
- Ah! Ah! Ah!
(minha machadinha)
desconfortável
um bafo, um bigode, um homem que não me lembro bem de onde veio
- De onde veio, mãe?
desconfortável
como o bafo do teu ressonar no meu pescoço.
Tenho nojo dele, mãe.
Nojo de ti, Manel.
E tão mais nojo de mim!
…tão mais nojo de mim…
neste desespero que grito para dentro
como os gemidos de sofrimento provocados pelo embate seco de um corpo estranho contra o ventre
(um corpo que não me lembro bem de onde veio
- De onde veio, mãe?)
até que
- Ah! Ah! Ah!
até que
- Amo-te, Margarida
até que
umas costas a roncarem para o meio da cama
umas costas que não me lembro bem de onde vieram.
- De onde vieram, mãe?
E eu cansada de fingir!
Não finjo mais, não finjo mais, não finjo mais…
tanto lhe dá
já perdi a conta aos anos que
tanto lhe dá
é por mim
é por mim que não finjo mais
que uma mulher não finge para o homem, mas para si mesma. Sei-o agora.
Portanto
não finjo mais
cansada de ali estar
como não estando
embora estado
sem que ali esteja
ou houvesse um dia
ali, como noutro lado qualquer, vazia contigo dentro,
vazia
contigo dentro
num gelar peganhento
até que
umas costas
que não me lembro bem de onde vieram.
a roncarem para o meio da cama
satisfeitas
suadas do esforço para arrancarem de mim um suspiro de gozo
depois de dizerem que me amam
- Amo-te, Margarida.
sem emoção
que para as costas
como para os bigodes
as palavras não custam nada
nada.

Não é mentira

Amo o Rui.
Amo o Rui, amo o Rui, amo o Rui…
Somos felizes.
Somos felizes, sim. Somos felizes.
Mas há uns dias que
no trabalho
o Simão…
Nem sei o que estou para aqui a dizer! Desabafos.
Amo o Rui.
Amo, sim. E somos felizes. É querido, é amigo, é companheiro, damo-nos bem na cama... Sim, damo-nos bem na cama. Mas há uns dias que
no trabalho
o Simão…
A verdade é que penso nele. Não gosto dele. Isso tenho a certeza.
Amo o Rui.
Mas a verdade é que
penso nele.
É desinteressado. Tem um olhar vago de quem não está nem aí para o mundo. Não dá confiança, mas sorri e é simpático. Há qualquer coisa que
os meus olhos
há qualquer coisa que puxa os meus olhos para ele.
Lá no escritório anda tudo doido. Só mulheres
e o Simão.
o Simão…
Lá no escritório anda tudo doido…
É bonito. Mas não é por isso. Tem um olhar vago de quem não está nem aí para o mundo. É desinteressado. Ou desperta interesse, que talvez seja o mesmo.
Nem sei o que estou para aqui a dizer! Desabafos.
Amo o Rui.
… damo-nos bem…
ainda ontem à noite, o Rui
na cama…
O Rui sempre me procurou. É quase sempre o Rui que me procura.
Amo o Rui, amo o Rui, amo o Rui…
quase sempre o Rui que me procura.
Gosto que o Rui me procure. Se calhar para me sentir mais desejada, ou por alguma coisa que está no meu genoma de fêmea
talvez seja o mesmo
talvez outra coisa qualquer na qual nunca parei para pensar.
Pensar para quê?
Amo o Rui.
Amo, sim. E somos felizes. É querido, é amigo, é companheiro, damo-nos bem na cama... Sim, damo-nos bem na cama. Mas há uns dias que
no trabalho
o Simão…
A verdade é que penso nele. Não gosto dele. Isso tenho a certeza.
Amo o Rui.
Mas a verdade é que…
É quase sempre o Rui que me procura.
Como ontem à noite
na cama
a mão do Rui, as minhas pernas, um arrepio, uma vontadinha
nunca é logo uma vontade
uma vontadinha
a mão do Rui
a boca
o meu pescoço, um arrepio
e a pouca luz do quarto a projectar na minha pele outra mão, outra boca
nas minhas pernas
no meu pescoço
outra mão
a pouca luz do quarto
outra mão
sim
não
sim
não
sim
mão
sim
mão
o Rui
o Rui
o Rui
amo o Rui
mas na minha cabeça
não sei porquê
Simão…
Não gosto dele. Isso tenho a certeza.
Mas…
um olhar vago
desinteressado…
Não gosto dele… certeza
amo o Rui
mas a verdade é que
penso nele.
Fizemos amor
eu e o Rui
sempre carinhoso comigo
nada a dizer
não é perfeito
ninguém o é
(detesto a expressão)
mas
nada a dizer.
Fizemos amor
o Rui
e no fim
o Rui
- Foi bom! Não foi?
e eu
- Foi. Foi óptimo.
eu que não estive bem ali
não me lembro de ter estado bem ali
de ter sentido bem as coisas.
Há dias do mês em que as mulheres não sentem tão bem as coisas.
Há dias do mês em que as mulheres não sentem tão bem as coisas.
Há dias do mês em que as mulheres não sentem tão bem as coisas.
Amo o Rui.
Amo o Rui.
Amo o Rui…
não é uma busca de verdade pela repetição da mentira.
Não é mentira.
Não é mentira.
Não é mentira.
Talvez outra coisa qualquer na qual nunca parei para pensar.
Pensar para quê?
Amo o Rui.
Amo, sim. E somos felizes. É querido, é amigo, é companheiro, damo-nos bem…
ainda ontem à noite…
- …Foi óptimo.
apesar de eu não ter sentido bem as coisas
Há dias do mês em que as mulheres não sentem tão bem as coisas.
como ontem
não é mentira
- …Foi óptimo.
ou pelo menos
- …bom!
como disse o Rui.
Há dias do mês em que as mulheres…
não sei porquê
nunca parei para pensar.
Pensar para quê?
Amo o Rui
somos felizes
apesar de há uns dias que
no trabalho
na minha cabeça
não sei porquê...
um olhar vago
desinteressado
não sei porquê
nunca parei para pensar…
Pensar para quê?
Não gosto dele… tenho a certeza.
Amo o Rui.
Amo o Rui.
Amo o Rui…
Amo o Rui, Simão. Entendes? Amo o Rui.